domingo, 14 de dezembro de 2025

Dona da Verdade

Quando cheguei cá e comecei a ganhar dinheiro para além da sobrevivência, comecei a poupar para uma emergência.
Essa emergência, na minha cabeça, sempre foi ter de marcar uma viagem de última hora. Era ter dinheiro para poder pagar o que fosse preciso para chegar rapidamente a Portugal. Dinheiro que esteve a aquecer a conta poupança até às duas da manhã do dia três de Fevereiro de 2024. Poucas horas depois de me desfazer a chorar ao telefone, quando a minha irmã o pôs ao ouvido da minha mãe, ligada às máquinas mas em morte cerebral. As palavras não eram para ela porque eu sabia que já ali não estava. Eram para a filha dela pequenina que tenho cá dentro. 
Dia quatro estava a apanhar um vôo para o Porto e dia cinco beijava-lhe a cara gelada. Já não estava em Portugal desde Dezembro de 2017. Primeira viagem sem os meus filhos. Primeiras noites sem eles desde que nasceram. Tantas primeiras vezes aquela viagem forçou.
Foram buscar-me ao aeroporto e, durante a viagem para casa, uma canção destacou-se da rádio.
Pedi para aumentar o volume:

Dona da verdade parecia um gol
Tinha mágica no olhar
Beijo de perigo imaginário amor
Balançava devagar
Ai ah ah

Tenho um sonho p'ra te dar
E alguns versos sobre o mar
A brisa doce que é melhor
P'ra ter coragem
Vem viver o que valer
Nem um sonho se perder
Na vida nada é para levar
É só viagem

Estava a chorar a minha mãe enquanto me alegrava estupidamente por ver pessoas que já não abraçava há tantos anos, algumas há demasiados anos, e que estavam ali para lhe dizer adeus ou apoiar a minha família. Eu sentia-me externa à situação de certa forma, uma extraterrestre acabada de aterrar. Olhava a minha mãe e a sensação desaparecia. Eu voltava a mim perante a minha primeira casa, o corpo dela. Tanta felicidade e tanta tristeza casadas naquela capelinha. Um bebé — a alegria e a inocência personificadas — e uma grávida a lembrar a todos o eterno ciclo da vida. Lembro-me claramente de sentir que devia dar atenção aos vivos, aos que estavam ali. Que era o que a minha mãe faria. Uma parte de mim queria cantar, que eu sei que ela quereria ouvir, mas a outra parte não conseguia. A canção estava claramente dentro do meu coração: Amazing Grace.

Dona da cidade parecia o sol
Só jogava p'ra ganhar
Pele de calor incendiário amor
Tinha pressa de chegar
Ai ah ah

Fiz uns versos que eu pensei
Sobre ser você е eu
Na vida nada é p'ra levar
É só miragem

Tеnho um plano e uma canção
Sem destino ou direção
A brisa doce p'ra mudar a paisagem

A única parte que ainda cheirava a ela era o cabelo. Era a única parte que ainda parecia viva também, que parecia ela. Deixei os meus dedos penteá-lo tanto quanto pude. O resto era saudade. Um corpo em saudade da alma. 

Vem viver o que valer
Deixa o tempo se perder
Na vida nada é p'ra levar
É só viagem

Era capaz de reproduzir o peso do caixão dela em esculturas. Tão pesado e tão vazio ao mesmo tempo que tão cheio. Uma parte da memória muscular daquele momento conseguiu discernir exactamente qual era o peso das flores, o peso dos bilhetinhos dos netos, o peso da madeira, o peso de tudo o que não era ela. Para só restar o peso dela na minha mão. A minha mãe na minha mão tinha um peso específico.
Quando eu e a minha irmã fomos levantar as cinzas, havia leveza mas pesava mais de saudade.

Tenho um sonho p'ra te dar
E alguns versos sobre o mar
A brisa doce que é melhor
P'ra ter coragem

Sempre que ouço a música, faço esta viagem de novo. Sinto o cabelo dela entre os meus dedos, o cheiro dela, o Sol, o Mar, os girassóis, a Vida.

A Morte é a verdadeira miragem.

quinta-feira, 30 de outubro de 2025

Aqui vivo Eu

Eu nasci no centro do Porto, a metros daquilo que hoje em dia é a estação de metro da Trindade, no Hospital da Ordem da Trindade. Eu vivi e cresci em Ermesinde e mais tarde em Rio Tinto, mas eu sou do Porto². 

Eu sou filha dos meus pais e A Cidade é a mãe dos três.
Os meus pais nasceram e cresceram no Porto. A minha família paterna era mesmo citadina e a materna veio de Paços de Gaiolo. Os meus avós maternos viviam na Rua de Faria Guimarães (onde eu ficava durante o dia quando os meus pais trabalhavam) e os paternos na Rua da Quinta Amarela. O "ir à aldeia" que muitos dos meus amigos de escola faziam, tal romaria às origens, era para mim ir ao Porto, a diferentes partes da cidade.

Quando aqui me perguntam de que cidade eu venho, digo sempre Porto ["a cidade de onde vem o vinho do Porto"] sem achar que minto. Sair na estação de Rio Tinto ou Ermesinde era para ir comer e dormir, mas era do lado de fora da Estação de São Bento que as raízes estavam. As bibliotecas eram no Porto. Os concertos eram no Porto. O São João! As serenatas, os cortejos. De certas partes do Porto, já se via o mar. O dentista e médicos especialistas eram lá. Os empregos dos meus pais. Tudo acontecia lá. As portas de São Bento já foram testemunhas de primeiros beijos.
No tempo em que ainda me conseguia imaginar a casar numa igreja, visualizava-o na Serra do Pilar - o que pode parecer paradoxal por ser em Gaia. Dali de cima, ver o Porto à distância dá-lhe uma forma compacta que de certa forma o humaniza, lhe dá um corpo. Sair da igreja e ter ali tanta cidade numa área visual pequena em relação ao tamanho real que ocupa transformava mais facilmente a cidade num convidado, em mais uma testemunha.
Tudo ainda acontece lá: foi no Prado do Repouso que a minha mãe foi cremada; foram aquelas avenidas as primeiras que descemos sem ela. Como quem dá os primeiros passos sem apoio, novamente.

Ir mais frequentemente a Portugal estes últimos dois anos fez-me perceber que muito desse Porto está irreconhecível.
Os edifícios estão lá, muitos deles extremamente polidos, mas a alma da cidade luta pela sobrevivência. Vi-a no São João, de esgelha. Também havia turistas "no meu tempo", mas eles não eram uma massa anónima que controlava indirectamente a cidade. Eram um nicho curioso.
Hoje em dia, entrar numa loja ou café é uma lotaria. Mesmo que tenha a sorte que falem português, alguns ainda tentam falar turista comigo. Eu tento responder em Porto enferrujado. Os que se lembram voltam a casa comigo, e eu com eles também.

Ir ao Porto nos últimos tempos não mata a Saudade como o fazia e as raízes saem um pouco ougadas desta história. 
Crescer talvez seja isto. Começar a enraizar em si mesma. Começar a construir dentro de si um recanto pacífico onde é sempre casa, onde há sempre amor, independentemente do exterior. Um lugar onde é sempre São João, Natal, mãe, mar, Sol. Um lugar onde eu sou sempre eu, independentemente do que me dizem [em Portugal sou sueca, na Suécia sou portuguesa]. Um lugar onde posso apenas ser sem precisar de fugir. 




Num contexto maior, um lugar de (re)lembrança, de eternidade, de unidade; o universo dentro de mim. Porque a Terra, qualquer e onde quer que seja é uma plataforma. Esta vida, uma folha numa planta maior.
Para a alma, o paraíso é a Terra. Para o corpo, o paraíso é o Céu. É no coração que eles se encontram e fundem. O coração como intermediário galáctico. Aqui vivo Eu.

terça-feira, 21 de outubro de 2025

love will forge you whole

(...)
Onde tu começas e eu acabo é difuso
Porque é de ti que eu broto.
E quando te beijo, encontro-me:
Eu pequena, eu maior, intemporal,
Todos os meus eus vêm fundir-se nos teus braços.
Forjas-me numa unidade, 
Para que te queira inteira,
Completamente,
Ardentemente,
Qual ferreiro cósmico, interestelar.

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

Tussilago farfara
Chega ao mesmo tempo
Que a primeira farfalla
Que o primeiro grou
Que o vento menos gelado
Que o riacho acordado.
Que a Liberdade,
Sempre a tempo.

22.04.2024

quinta-feira, 17 de julho de 2025

Tristeza e Alegria

Sorg och Glädje
Tristeza e Alegria 

Varje djup sorg har en förlorad glädje till föremål
Cada tristeza profunda tem uma alegria perdida como objecto

Tappa inte bort denna riktning
Não percas esta direcção

Låt inte sorgen glömma sitt ärende
Não deixes a tristeza esquecer o seu propósito 

Sorgen är den djupaste ära som glädjen kan få
A tristeza é a honra mais profunda que a alegria pode ter

Harry Martinson

quinta-feira, 13 de março de 2025

Mais da língua do coração...


Para saber se me estou a apaixonar por um gato do abrigo é só prestar atenção: se, quando sozinha, começar a falar com eles em português, é amor. Foi o Copperfield (na foto) que me ajudou a perceber isso.

Chegou na altura em que comecei o meu voluntariado. Nem lhe podíamos tocar. Atirava-se às paredes da jaula, que ficavam cheias de sangue, e quando entravamos para dar comida e limpar nem o víamos de tanto medo que tinha. Aos poucos, derreteu e depois de uns meses transformou-se no gatão mais meiguinho do mundo. As crianças foram visitá-lo e ele foi tão paciente e carinhoso! 

Tenho saudades dele. Jag saknar inte honom.
É mesmo saudade.

domingo, 1 de dezembro de 2024

Morre-se tantas vezes numa vida...


Antes de uma transformação daquelas que sabes que vai mudar a tua vida para sempre chega uma enorme nostalgia. Como se a vida passasse à frente dos teus olhos no momento da morte.
Só que não vais morrer.
Tudo o que foi (sem julgar se foi bom ou mau) trouxe-te aqui. Tu és a soma de todas as partes. Deste salto voltarás mais inteira, integral. As versões de ti que precisaste criar deixas dobradas, cuidadosamente, à beira do precipício. Deixaram de (te) servir.

Há um momento de conexão com o Universo em que transbordas de gratidão e humildade. Unidade. Tu és tudo, a separação é ilusão. Tu não vais morrer, vais renascer.
Metamorfose. Fénix. Um mais autêntico eu.

Sentes um borbulhar de antecipação. A felicidade que por aí vem, já a sentes. É fantástico e assustador.
Um último olhar para o arsenal de medos e dúvidas, para os destruires de vez.

É este o momento.
Inspiras fundo antes de confiar e mergulhar para o desconhecido.
Um toque leve dos que estão do outro lado e te querem bem, que te querem na maior e melhor versão de ti.
Quando ressurgires das profundezas e abrires os olhos, vais estar mais perto de Casa.