Essa emergência, na minha cabeça, sempre foi ter de marcar uma viagem de última hora. Era ter dinheiro para poder pagar o que fosse preciso para chegar rapidamente a Portugal. Dinheiro que esteve a aquecer a conta poupança até às duas da manhã do dia três de Fevereiro de 2024. Poucas horas depois de me desfazer a chorar ao telefone, quando a minha irmã o pôs ao ouvido da minha mãe, ligada às máquinas mas em morte cerebral. As palavras não eram para ela porque eu sabia que já ali não estava. Eram para a filha dela pequenina que tenho cá dentro.
Dia quatro estava a apanhar um vôo para o Porto e dia cinco beijava-lhe a cara gelada. Já não estava em Portugal desde Dezembro de 2017. Primeira viagem sem os meus filhos. Primeiras noites sem eles desde que nasceram. Tantas primeiras vezes aquela viagem forçou.
Foram buscar-me ao aeroporto e, durante a viagem para casa, uma canção destacou-se da rádio.
Pedi para aumentar o volume:
Dona da verdade parecia um gol
Tinha mágica no olhar
Beijo de perigo imaginário amor
Balançava devagar
Ai ah ah
Tenho um sonho p'ra te dar
E alguns versos sobre o mar
A brisa doce que é melhor
P'ra ter coragem
Vem viver o que valer
Nem um sonho se perder
Na vida nada é para levar
É só viagem
Estava a chorar a minha mãe enquanto me alegrava estupidamente por ver pessoas que já não abraçava há tantos anos, algumas há demasiados anos, e que estavam ali para lhe dizer adeus ou apoiar a minha família. Eu sentia-me externa à situação de certa forma, uma extraterrestre acabada de aterrar. Olhava a minha mãe e a sensação desaparecia. Eu voltava a mim perante a minha primeira casa, o corpo dela. Tanta felicidade e tanta tristeza casadas naquela capelinha. Um bebé — a alegria e a inocência personificadas — e uma grávida a lembrar a todos o eterno ciclo da vida. Lembro-me claramente de sentir que devia dar atenção aos vivos, aos que estavam ali. Que era o que a minha mãe faria. Uma parte de mim queria cantar, que eu sei que ela quereria ouvir, mas a outra parte não conseguia. A canção estava claramente dentro do meu coração: Amazing Grace.
Dona da cidade parecia o sol
Só jogava p'ra ganhar
Pele de calor incendiário amor
Tinha pressa de chegar
Ai ah ah
Fiz uns versos que eu pensei
Sobre ser você е eu
Na vida nada é p'ra levar
É só miragem
Tеnho um plano e uma canção
Sem destino ou direção
A brisa doce p'ra mudar a paisagem
A única parte que ainda cheirava a ela era o cabelo. Era a única parte que ainda parecia viva também, que parecia ela. Deixei os meus dedos penteá-lo tanto quanto pude. O resto era saudade. Um corpo em saudade da alma.
Vem viver o que valer
Deixa o tempo se perder
Na vida nada é p'ra levar
É só viagem
Era capaz de reproduzir o peso do caixão dela em esculturas. Tão pesado e tão vazio ao mesmo tempo que tão cheio. Uma parte da memória muscular daquele momento conseguiu discernir exactamente qual era o peso das flores, o peso dos bilhetinhos dos netos, o peso da madeira, o peso de tudo o que não era ela. Para só restar o peso dela na minha mão. A minha mãe na minha mão tinha um peso específico.
Quando eu e a minha irmã fomos levantar as cinzas, havia leveza mas pesava mais de saudade.
Tenho um sonho p'ra te dar
E alguns versos sobre o mar
A brisa doce que é melhor
P'ra ter coragem
Sempre que ouço a música, faço esta viagem de novo. Sinto o cabelo dela entre os meus dedos, o cheiro dela, o Sol, o Mar, os girassóis, a Vida.
A Morte é a verdadeira miragem.