quinta-feira, 30 de outubro de 2025

Aqui vivo Eu

Eu nasci no centro do Porto, a metros daquilo que hoje em dia é a estação de metro da Trindade, no Hospital da Ordem da Trindade. Eu vivi e cresci em Ermesinde e mais tarde em Rio Tinto, mas eu sou do Porto². 

Eu sou filha dos meus pais e A Cidade é a mãe dos três.
Os meus pais nasceram e cresceram no Porto. A minha família paterna era mesmo citadina e a materna veio de Paços de Gaiolo. Os meus avós maternos viviam na Rua de Faria Guimarães (onde eu ficava durante o dia quando os meus pais trabalhavam) e os paternos na Rua da Quinta Amarela. O "ir à aldeia" que muitos dos meus amigos de escola faziam, tal romaria às origens, era para mim ir ao Porto, a diferentes partes da cidade.

Quando aqui me perguntam de que cidade eu venho, digo sempre Porto ["a cidade de onde vem o vinho do Porto"] sem achar que minto. Sair na estação de Rio Tinto ou Ermesinde era para ir comer e dormir, mas era do lado de fora da Estação de São Bento que as raízes estavam. As bibliotecas eram no Porto. Os concertos eram no Porto. O São João! As serenatas, os cortejos. De certas partes do Porto, já se via o mar. O dentista e médicos especialistas eram lá. Os empregos dos meus pais. Tudo acontecia lá. As portas de São Bento já foram testemunhas de primeiros beijos.
No tempo em que ainda me conseguia imaginar a casar numa igreja, visualizava-o na Serra do Pilar - o que pode parecer paradoxal por ser em Gaia. Dali de cima, ver o Porto à distância dá-lhe uma forma compacta que de certa forma o humaniza, lhe dá um corpo. Sair da igreja e ter ali tanta cidade numa área visual pequena em relação ao tamanho real que ocupa transformava mais facilmente a cidade num convidado, em mais uma testemunha.
Tudo ainda acontece lá: foi no Prado do Repouso que a minha mãe foi cremada; foram aquelas avenidas as primeiras que descemos sem ela. Como quem dá os primeiros passos sem apoio, novamente.

Ir mais frequentemente a Portugal estes últimos dois anos fez-me perceber que muito desse Porto está irreconhecível.
Os edifícios estão lá, muitos deles extremamente polidos, mas a alma da cidade luta pela sobrevivência. Vi-a no São João, de esgelha. Também havia turistas "no meu tempo", mas eles não eram uma massa anónima que controlava indirectamente a cidade. Eram um nicho curioso.
Hoje em dia, entrar numa loja ou café é uma lotaria. Mesmo que tenha a sorte que falem português, alguns ainda tentam falar turista comigo. Eu tento responder em Porto enferrujado. Os que se lembram voltam a casa comigo, e eu com eles também.

Ir ao Porto nos últimos tempos não mata a Saudade como o fazia e as raízes saem um pouco ougadas desta história. 
Crescer talvez seja isto. Começar a enraizar em si mesma. Começar a construir dentro de si um recanto pacífico onde é sempre casa, onde há sempre amor, independentemente do exterior. Um lugar onde é sempre São João, Natal, mãe, mar, Sol. Um lugar onde eu sou sempre eu, independentemente do que me dizem [em Portugal sou sueca, na Suécia sou portuguesa]. Um lugar onde posso apenas ser sem precisar de fugir. 




Num contexto maior, um lugar de (re)lembrança, de eternidade, de unidade; o universo dentro de mim. Porque a Terra, qualquer e onde quer que seja é uma plataforma. Esta vida, uma folha numa planta maior.
Para a alma, o paraíso é a Terra. Para o corpo, o paraíso é o Céu. É no coração que eles se encontram e fundem. O coração como intermediário galáctico. Aqui vivo Eu.